quarta-feira, 25 de maio de 2011

"A cartomante"

                                        A Cartomante
Igor observa a Carlos Miguel que há mais coisas no céu e na terra do que
sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a linda Sabrina ao
moço Dionatan, numa sexta-feira de Outubro de 2011, quando este ria dela,
por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia
por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois sabia que eu
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora
gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as
cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você
me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Dionatan, sorrindo.
— Não diga isso, Dionatan. Se você soubesse como eu tenho vivido, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Dionatan pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que
queria ela , que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso,
quando tivesse algum medo, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,
repreendeu-a; disse-lhe que era errado andar por essas casas. Pedro
podia saber, e depois...
— Quê saber! Fui me cuidando, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Beloni; não passava ninguém nessa
hora. Relaxa; eu não sou maluca.
Dionatan riu outra vez:
— Você acredita em tudo que falam? Perguntou-lhe:
Foi então que ela, sem saber que traduzia Igor em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não
acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que
mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuidou no quê ia falar, mas calou-se. Não queria tirar as
ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve uma bagagem
inteira de crendices, que a mãe contou. E que aos vinte anos
desapareceram. Como tivesse recebido da mãe dois ensinamentos, pensou na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação
total. Dionatan não acreditava em nada. Por quê? Não podia dizer, não
possuía uma só palavra: limitava-se a dizer não à tudo. Contentou-se em levantar os ombros, e foi andando, passo a passo.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Sabrina estava certa de ser
amada; Dionatan, não só o estava, mas via ela tremer  por ele,
ir às cartomantes, e, por mais que chama-se sua atenção, não podia deixar de
sentir-se feliz. A casa do encontro era na antiga Rua Andrade Neves,
onde morava uma tia de Sabrina. Esta desceu pela Rua do
Portão, na direção do Sistema, onde residia; Dionatan desceu pela rua da
Guarda Velha, olhando para a casa da cartomante.
Pedro, Dionatan e Sabrina, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação.
 Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Pedro
seguiu a carreira de Juiz. Dionatan entrou no funcionalismo, contra a
vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Dionatan
preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No
princípio de 2009, voltou Pedro da província, onde casara com uma moça linda e tonta; abandonou a magistratura e veio dar um de advogado.
Dionatan arranjou-lhe casa para os lados de Passo Fundo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? Disse - le Sabrina , levando a mão. Não imagina como
meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Dionatan e Pedro olharam-se com ternura. Eram amigos.
Depois, Dionatan confessou de si para si que a mulher do Pedro não
mentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos,
olhos castanhos, boca carnuda. Era um pouco mais velha que
os dois: contava trinta anos, Pedro vinte e nove e Dionatan vinte e seis.
Entretanto, o porte de Pedro fazia-o parecer mais velho que a mulher,
enquanto Dionatan era tímido na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a
ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de
alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a
mãe de Dionatan, e nesse desastre, que  foi, os dois mostraram-se grandes
amigos dele.Pedro cuidou do enterro,  e do inventário; Sabrina
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. A verdade é que
gostava de passar em companhia dela, era a sua confidente, quase
uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Liam
os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Dionatan ensinou jogar
damas e o jogo de xadrez, jogavam de noite— ela mal, — ele, para deixar ela ganhar
l, pouco menos mal. Até aí tudo bem. Agora a ação da pessoa, os
olhos teimosos de Sabrina, que procuravam muitas vezes os dele, que olhava ao marido
 antes de o fazer, as mãos frias, as atitudes cuidadosamente pensadas.
Um dia, fazendo ele aniversário, recebeu de Pedro uma rica bengala de presente e
de Sabrina apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde sentir dentro de si, não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho.
Dionatan quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Sabrina, como uma
cobra, foi-se enrolando nele, envolveu-o todo, fez-lhe arrepiar
num espasmo, e beijou-o . Ele ficou meio tonto. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato fosse atirado ao chão, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,
pisando  por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada
mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Pedro continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, Dionatan recebeu uma carta anônima, que o chamava. De sem vergonha, e dizia que todos já sabiam de tudo. Dionatan teve
medo, e, para desmanchar as suspeitas, começou a diminuir as visitas à casa de
Pedro. Este sentiu falta. Dionatan respondeu que o motivo era uma conquista amorosa de rapaz.  As ausências começaram a ser mais longas. Até terminar suas visitas.
Foi aí que Sabrina, desconfiada e com medo, foi lá na cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa das atitudes de Dionatan.
Vimos que a cartomante deu muita confiança, e que o rapaz a repreendeu por ter ido lá. Passaram-se algumas semanas. Dionatan recebeu mais cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência, mas despeito de algum rapaz; que foi a opinião de Sabrina.
Nem por isso Dionatan ficou mais sossegado; tremia só de pensar que a tal carta caísse nas mãos de Pedro e a não daria para fazer nada. Sabrina concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo as cartas para ver a letra que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Pedro começou a mostrar-se
Frio e rancoroso, falando pouco, como desconfiado. A opinião dela é que Dionatan deveria ir a sua casa novamente tornar a falar com seu marido, e assim até que ouvisse alguma suspeita de um negócio particular. Dionatan desconfiava um pouco; pois aparecer depois de tantos meses, era confirmar a suspeita ou denúncia. Mas é melhor ser cuidadoso,
sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se falarem, em caso de necessidade, e separaram-se chorando.
No dia seguinte, estando na repartição, Dionatan recebeu este bilhete de
Pedro: "Vem já, à nossa casa; preciso falar com você, vem depressa.” Era mais de
meio-dia. Dionatan saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural
chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava algo sério.
— Vem já, à nossa casa; preciso falar com você, vem depressa. — repetia ele com
os olhos no papel.
Imaginariamente, Sabrina chorando e Pedro indignado, pegando a caneta e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Dionatan tremeu, tinha
medo: depois sorriu disfarçando, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de
recuar, e foi andando. Ao caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Sabrina, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verdadeira; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Pedro conhecesse agora tudo. A mesma parada de suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto
fútil, viria confirmar o resto.
Dionatan ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as
palavras estavam decoradas, diante dos olhos,  — o que era ainda pior, — eram-lhe sussurradas em seus  ouvidos, com a própria voz de Pedro.
"Vem já, à nossa casa; preciso falar com você, vem depressa." Ditas assim, pela
voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê?
Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto.
Tanto imaginou o que se iria passar que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Pensou em ir armado, considerando
que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
desistiu da idéia, envergonhado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção
do Largo da Tijuca, para entrar numa carroça. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo ficou preocupado. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Tijuca, a carroça teve de parar, a rua estava engarrafada com uma carroça, que caíra.Dionatan, em si mesmo, esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé da carroça, ficava a casa da cartomante, a quem Sabrina consultara uma vez.
Dionatan reclinou-se na carroça, para não ver nada. A agitação dele era
grande,  e do fundo de sua alma surgiu alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira rua, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. Na rua, gritavam os homens, erguendo a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Dionatan fechava os olhos,
pensava em outras coisas: mas a voz de Pedro sussurrava-lhe a orelhas as
palavras da carta: "Vem, já,..." E ele via a cena do drama e tremia.
A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Dionatan achou-se
diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de
tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos
extraordinários: e a mesma frase do príncipe da Inglaterra retumbava
dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia”
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e
rápido correu  pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus
encardidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada.
Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era
tarde, a curiosidade fervia o sangue, a cabeça doía; ele
tornou a bater uma, duas, três batidas. Veio uma mulher; era a cartomante.
Dionatan disse que ia consultá-la, ela convidou para entrar. Dali subiu ao sótão, por
uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma
salinha, com pouca luz, por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.
Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do
que destruía o prestígio.
A cartomante pediu que sentasse diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Dionatan. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
encardidas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, argentina,
morena e magra, com grandes olhos rápidos e agudos. Voltou três cartas
sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor teve um grande
susto...
Dionatan, admirado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra
vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas
pintadas de um esmalte vermelho; baralhou-as bem, cortou os maços, uma, duas. Três vezes;
depois começou a estendê-las.Dionatan tinha os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Dionatan inclinou-se para ouvir uma a uma as palavras. Então ela disse
que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo.deveria ter bastante cuidado:
tinha muitas invejas e olho gordo. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Sabrina. . . Dionatan ficou encantado. A cartomante acabou, recolheu as
cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora devolveu-me a paz de espírito, disse ele estendendo a mão por
cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, Muchacho enamorado...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Dionatan estremeceu,
como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante
foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com cachos de uvas, tirou um cacho
destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de
dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha
um ar particular. Dionatan, ansioso por sair, não sabia como pagar; ignorava
o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quanta quer
mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Dionatan tirou uma nota de cinqüenta reais, e entregou-lhe. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era vinte reais.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na carteira, e descia com ele,
falando, com um leve sotaque. Dionatan despediu-se dela embaixo, e desceu a
escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com o valor do dinheiro que tinha recebido, subia as escadas, cantarolando uma canción. Dionatan achou a carroça esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhorar. O céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou infantil demais; recordou os termos da carta de Pedro e reconheceu que eram
íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu
também que era urgente, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, pensou em alguma desculpa ou qualquer coisa. De volta com os planos, repetia as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto?...
 Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo tímido; mas a mulher, as cartas, as palavras firmes e afirmativas: — Vá, vá, Muchacho enamorado; e no fim, ao longe, a canção da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos,
uma fé nova e forte.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de antes e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Dionatan olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Pedro. Apeou-se, empurrou a porta de ferro
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra,
e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Pedro.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; O quê houve?
Pedro não lhe respondeu; tinha a face enrugada com ar amedrontado; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Dionatan não pôde sufocar um grito
de terror: — ao fundo sobre o tapete, estava Sabrina morta e ensangüentada.
Pedro pegou-o pela gola, e, desferiu dois tiros a queima roupa, deixando-o esvaindo em sangue no chão.
                                                                                                    FIM